domingo, 11 de setembro de 2011

"NETI, NETI" por C. Jinarajadasa

Existe uma palavra sânscrita que é reconhecida como sintetizando o mais elevado ensinamento das sábios hindus.  É Brahman, que significa Existência Una, cujas únicas características cognoscíveis para nós são sat, chit e amanda — existência, inteligência e bem-aventurança.  Ao  “conhecedor de Brahman”  o mistério da existência está resolvido; não há dualidade de Deus e Não-Deus, do bom e do mau, do prazer e da dor, do alto e do baixo.  Raça e religião, cultura e casta são para ele apenas rótulos que falsificam o fato fundamental de que existe em tudo uma Vida Una indivisível — "o Um sem segundo". O sábio aceita cada forma de vida como a Vida Una, inescrutável e inspiradora.  Essa compreensão de Brahman é tão poderosa e tudo transforma, que era dito antigamente: "e fores contar isto a um galho seco ele irá lançar folhas e flores!"

A verdade no tocante à unidade de toda vida não é, naturalmente, a descoberta apenas dos sábios hindus.  Toda escola filosófica que existiu, desde a Atlântida aos dias modernos, afirmou essa grande verdade de uma ou de outra forma. As formas necessariamente variam.  A concepção platônica do Ser, com seus atributos do bom, do verdadeiro e do belo, é uma forma, enquanto que os filósofos cristãos com seu ensinamento sobre a transcendência e a imanência de Deus dão outra.  Uma outra forma fascinante, também, é a de Lao-Tzu, com o seu ensinamento concernente ao Tao, o "Caminho" .

Porém existe uma ssegunda palavra na filosofia huindu que é menos conhecida que  Brahman, e que expressa uma verdade não proclamada por outras filosofias.  Essa palavra é Neti, que na realidade é composta de duas  palavras sânscritas  na - iti — “ não assim”. Mas a palavra Neti é usada na filosofia hindu em uma concepção estupenda, que é o clímax da realização dos sábios hindus.

Colocando de maneira suscinta, Neti significa que, qualquer que seja a asserção que vocês fizerem concernente à natureza de Deus, a Realidade Suprema, e que por mais inspirada tenha sido a sua proclamação, ela não é a verdade.  Pois o que quer que seja proclamado sobre a natureza dessa Realidade, não é a verdade a ela concernente.  Para tornar o pensamento mais preciso, suponhamos que um Grande deva tenha vindo e dito que conhecia Deus, descrevendo os seus atributos.  O sábio hindu aspirando à verdade dirá simplesmente "Neti , Neti" — "não assim" , "não assim" , significando que por nenhum atributo fenomenal poderá a Realidade ser conhecida.  O sábio iria ainda mais longe ao dizer "Neti , Neti" , mesmo se o Senhor  Supremo, o próprio Ishwara , permanecesse diante dele como o revelador da Realidade.  Pois nada corporificado poderá revelar a Realidade; por nenhum termo do manifestado pode o imanifesto ser conhecido. É, portanto, um axioma que o que quer que seja  experienciado é apenas a realização  de algum atributo da Realidade, mas não a própria Realidade.

Para cada experiência, embora espiritual e transcedente, o sábio deve dizer "Neti , Neti".  Onde irá terminar  a sua busca da Realidade ele não sabe, mas à medida que se eleva de plano em plano, e parece  chegar cada vez mais perto  do Centro, ele  deverá sempre dizer  a cada plano "Neti , Neti". Pois, enquanto existir  algo externo a observar, o que ele observa não pode ser a Realidade.

Essa intransigência do sábio hindu é estranha  à filosofia ocidental.  O que o ocidente atingiu de mais elevado foi, indubitavelmente, a maravilhosa concepção de Platão, que ele coloca nos lábios de Diotima, a profetisa que instruiu Sócrates em relação à natureza do Um.

"Convém que aquele que quiser ir por um reto caminho até a meta, comece desde jovem a se dirigir aos corpos belos, amar primeiro um só corpo e criar belos discursos; compreender depois que a beleza que reside em qualquer corpo é irmã da que reside no outro, e que se o que se deve perseguir é a beleza da forma, é grande insensatez não considerar que é uma só e idêntica coisa a beleza que há em todos os corpos belos e acalmar esse apego veemente a um único, despregando-o e considerando de pouca monta.

Depois disso, ter por mais valiosa a beleza das almas que a dos corpos, de tal modo  que se alguém tiver uma bela alma, ainda que seu corpo seja pouco gracioso, basta isso para amá-lo, mostrar-se  solícito, criar e buscar palavras tais que possam tornar melhores os jovens, a fim de ser obrigado novamente a contemplar a beleza que há nas normas de conduta e nas leis, e a perceber que tudo isso está unido por parentesco a si mesmo, para considerar assim que a beleza do corpo é de escassa importância.

Depois das normas de conduta  ele será levado às ciências, para que  veja também a beleza das ciências, dirija o seu olhar a toda essa beleza, que é muita, e não veja, a seguir, um homem vil  e de espírito mesquinho, servindo à beleza que reside em um só ser, ou em uma norma de conduta, mas que volte o seu olhar para esse imenso oceano de beleza e, sua contemplação faça-o criar muitos belos e magnifícos discursos e pensamentos  de inesgotável filosofia, até que, robustecido e elevado por ela, vislumbre uma ciência única, a ciência única, a ciência da beleza infinita.

Pois aquele que até aqui tem sido educado na inteligência do amor, e contemplou nessa ordem e na devida forma as coisas belas, dirigindo-se para o grau supremo de iniciação no amor, aquirirá de repente a visão de um SER maravilhosamente belo; aquilo precisamente por cuja causa tiveram lugar todas as fadigas anteriores, o UM que existe sempre, não nasce nem morre, não cresce nem decresce, não tem mudança, nem desvio, nem alteração.  Nem se lhe representará a beleza como um rosto, nem como mãos, nem outra coisa corporal, nem como um raciocínio, nem como um conhecimento, nem residindo em outra coisa que não ela mesma; nem no animal, nem no homem, nem na terra, nem no céu, nem em qualquer outra criatura; mas a própria Beleza em si, sozinha, única, separada e eterna, a Beleza da qual participam todas as coisas belas de uma maneira tal, que ainda que nasçam e morram, não a aumenta em nada, nem a diminui, nem sofre  variação alguma em absoluto.  E aquele que  sendo conduzido e elevando-se pelos amores humanos começa a ver essa Beleza, ele não está longe, digo eu, de atingir o fim de tudo.” (*)

Nessas palavras magníficas de Platão temos o mesmo ensinamento dos Upanishads.  Revelando o Um com os atributos do Deus Pessoal, o Shvetashvatara Upanishad canta:

“Podemos conhecê-lo o Senhor  supremo dos senhores, do deus supremo dos deuses, o rei dos reis, supremo do supremo, senhor do universo, o Deus a ser adorado.

Chegas a ser mulher e homem e jovem e donzela; e na velhice com o bastão hão de apoiar teus passos; tu nasces com rosto em todas os lados. 

És o inseto azul, o pássaro verde, o animal de olhos vermelhos, a nuvem que carrega o raio em seu útero, as estações e as marés, és sem princípio.  No poder onipresente tens teu lar, de onde nasceram todos os mundos ."

O sábio hindu curva-se em reverência diante da borboleta azul e do pássaro verde, diante da pedra e do cachorro, e sussurra para si ‘Brahmam’ !  Mas prontamente, pelo efeito nele dessa gloriosa verdade, ele murmura: "Neti , Neti" , e passa adiante.

O ensinamento de "Neti" será então uma negação de que a verdade poderá ser encontrada?  Poderá o coração do homem nunca chegar ao repouso?  Não é o que o ensinamento diz.  Os sábios prometem repouso — o repouso eterno.  Mas eles nos avisam contra o pensamento de que o repouso é onde existe o Deus Pessoal. A Índia não seria a Índia se ela parasse na concepção, embora elevada de um Deus Pessoal. Daí porque o Vedanta proclama que Ishwara, o Deus Pessoal de um universo criado, é apenas uma emanação.  Por trás dele existe o Absoluto do qual emanou.  Daí também porque o Budismo ignora completamente o problema da natureza de Deus.  O pensamento hindu sempre paira no empíreo, dá ele parecer aos místicos acidentais movendo-se em um frio nada, onde a alma é congelada na inconsciência.  Todavia, a maior contribuição da Índia ao desenvolvimento espiritual do mundo é "Neti , Neti"“ — "não assim, não assim".

"Neti" é um dizer árduo, mas é o único cajado que o peregrino encontra para se apoiar até o final. "Net" é o que a vida lhe ensina. Mulher e filhas, honra e fama, sabedoria e trabalho, tudo isso o prende alternadamente, e a vida parece por um instante feri-lo.  Então, seu próprio passado, seu próprio Karma, vem para ensiná-lo pela dor e pela renúncia a lição de "Neti" . Mais tarde virá o estágio em que "Guru é Brahmã , Guru é Vishnu, Guru é Mahadeva, sim, Guru é o próprio Brahman."  Mas a vida ensina-o ainda a murmurar "Neti , Neti", mesmo que ele deva tudo o que é ao seu Guru. Cada vez mais alto, ele vai de uma emanação para outra; "Neti , Neti" ele ainda murmura. No último estágio exceto um, mesmo diante do próprio Ishwara, e mesmo enquanto uno com o seu Senhor, ele ainda deve murmurar: "Neti , Neti"

Somente quando permanecermos sozinhos, totalmente despidas de todas as coisas de todos os planos, não contando com nada, nem mesmo com Deus, vislumbraremos a verdadeira natureza da Realidade.  Então, espontará pouco que Luz no Caminho conclua com essas três últimas regras para guiar aquele que está no umbral da divindade:


"Aferra-te ao que não tem substância nem existência.
Não ouças senão a voz que é insonosa.
Não olhes senão o que é invisível,
Tanto ao sentido interno como ao externo."

Enquanto existirem uns poucos nesta terra antiga que sussurrem "Neti , Neti", a vida indiana não mudará fundamentalmente.  E embora eles pareçam permanecer à parte do mundo, habitando nas ermidas florestas, ou nas cavernas das montanhas, eles dão uma unidade e coerência aos sonhos do mundo de paz e salvação.  Pois a salvação é de dentro; deve ser assim, pois o homem e Deus são um, não dois.  O caminho interior, onde termina o caminho exterior, que é "Neti , Neti"

Notas:
(*) Platão — “ O Banquete”

Fonte:
C. Jinarajadasa — “O Segrego das Idades e outros ensaios Teosóficos.”
Tradução de Elza Teixeira

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